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o pormenor da ferrugem na dobradiça,
a mesma cor fogosa no óleo sobre madeira
e no olhar de veludo que atravessa rendido a janela para o rio







- via-se já como uma barca -

 às margens
deitava a mansidão fluvial
ao leito
ancorava-a o dobre das horas
que o sino impávido soía
ao sol
era nave langorosa
e entardecia...






em cada ocaso mora a promessa de uma alvorada


Foto do André - Aldeia da Luz - Verão de 2008



talvez a cal não queime
a luz não cegue
e no fresco
como na fronte
só o azul arda cantante


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Há um sino que dobra,
no campanário barroco da igreja matriz.
Uma saudade que vibra num choupo dourado.
Um queixume que espevita na serpente impávida do rio.
No aroma desperto do vinho.



«dias ruivos estes, às portas do ano novo. dir-se-ia que passam tangentes ao crepúsculo. são ruivos sim, como chavetas de cobre. é do sol desmaiado e das horas lentas com que diluis o olhar na paisagem. é talvez das quatro estações de vivaldi. seria ruivo, janus – o das duas caras? não me escutou sobre a divindade. repara! chamou-me, apontando o céu. ali para sudoeste, nas tuas dez horas, a crina de um cavalo árabe, fulgindo ao vento. demasiado ágil e veloz para um pobre coração enraizado - pensei. são cirros altíssimos. sinal de bom tempo. melhor assim, sempre alargam um bocadinho estas tardes acanhadas. poéticas de tão contidas. ficamos um pouco mais a afogar o olhar no poente. ocupados só em beber o ocaso. embriagados de quietação, com os pêndulos a bater a distância. compassados. cingidos. serenos. próximos da face da noite e da fase da lua. hoje, plena. sem nenhum deus vingativo. sem nenhum adeus tardio.»

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CONVERSA COM OS MEUS BOTÕES

- Ouvi! Mas cheguem-se perto porque vou falar baixo para que mais ninguém me ouça - Eu até gosto de advogados, mas cá do “eu é que sei, eu é que mando”, livra!
- ?
- Sim, gosto. Além de arautos do direito natural e da equidade são, enquanto sujeitos de um ofício solitário, provectos paradigmas de liberdade, de que a história está cheia de exemplos. Isto está a ficar um bocadinho barroco?
- Gongórico!
- Gongóricos sois vós, botõezinhos de madrepérola, todos xiripititi de brilhos e arrogâncias.
- E…?
- E o quê? Ruminava, e pelos vistos tão baixinho que nem me ouvistes vós, que a arrogância pode ser comparada ao fondue de chocolate: a gente observa aquele cachão verborreico e só dá vontade de... (truclas!) a-r-r-e-b-a-t-a-r!
- Comer, queres tu dizer?!
- Mais deter, com o punho mesmo. Mas onde é que eu ia?
- No paradigma da liberdade…
- Certo. Tal como professa a sentença de Lacordaire (o padre):

"Saibam pois, os que o ignoram, que entre o forte e o fraco, o rico e o pobre, o amo e o criado, a liberdade é que oprime e a lei é que liberta"

- E não é?!
- Claro que é! E que será o advogado, enquanto oficial independente da literacia regulamentar, senão o último reduto do injustiçado ou, se preferirdes, a inteligência ao serviço da justiça?!



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- aurora -

traz as mãos coadas como água
como chuva
nuvem de neve fluída
chegada fria
no lume da madrugada




- cauda mefistofélica ou tridente de neptuno? -



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Onde havia pedras, medraram as ervas.
Deitaram raízes as vozes.
Onde se erguia um templo, agora cantam as fontes.
Sagram-se os verdes sentidos assentes no jade.
Como tinha de ser, tapada a vasilha de Pandora.

Em que ponto exacto se dilui o vértice do caminho?

De pena em pena, na pedra que resvala.
Em Sísifo e no seu recomeço inútil.
Só se divisa o pó na berma da estrada.
Haveria de colher, de raspar, o musgo…

Em que ponto exacto?
Na entidade de ti subterrada, ó semente!
Não. Nem só de neve cantam as fontes.
E ele sabia-o:

“Se matássemos uma criança que chora
para nos restituir o silêncio…”

Medra o silêncio.
Mas e as pedras que respiram num choro inocente?
Medrasse o silêncio. Tardarás…

Demorada fronte, olhar velado, lábios divinos. Apetecíveis.
Tardarás sempre, agora, ó Prometeu portador do fogo!
Não mais o gesto será de ternura enforcada,
total entre os cabelos e o dorso.

Haveria de colher o musgo.
De escavar no peito.
De enegrecer as unhas.

Não. Não poderemos esquecer!
Como se fora possível desistir assim do que a alma prende.

É preciso que chova sobre a terracota.
Que no molde cru se entregue as mãos à terra.
Destapar as pedras e sentir a pulsação das palavras,
hoje submersas.

Talvez então, no infinito azul do equinócio,
uma nuvem solta lembre a pomba de Afrodite
e tudo a nós regresse inteiramente.



Os fins não justificam os meios, mas não apenas porque os meios possam ser criminosos: os fins não justificam os meios porque são contaminados por eles. Se matássemos uma criança que chora, para nos restituir o silêncio - o silêncio restituido estaria cheio do seu choro...
Vergílio Ferreira
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imperiosa necessidade
de espiar para criar

versos ledos hinos credos
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Olhem-me só esta elegante, sóbria e belíssima plumagem! É por estas e por outras que a inveja é intrínseca à criatura humana! Como não haveria de ser, nossa avó Eva, tentada a provar o fruto do conhecimento, se tudo o que tinha para cobrir as vergonhas, era uma folha de parreira?!

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Sentada à lareira que a neve ladroa
lembrava a romeira arautos de outrora:

«Os ventos fecundam o pasto das chamas,
teus fados secundam as teias que tramas»

Arautos de outrora lembrava a romeira
que há neve ladroa p'ra lá da soleira:

«As fibras fecundas das teias que tramas
meus olhos ateiam em lugar das chamas»






uma boa foto é como um poema: conta uma grande história em poucas linhas




Esta que me proponho contar-vos tem dois protagonistas: o simpático Trotsky, conhecido na vizinhança como Skeepy, mais abaixo captado em alegre passeata à beira Douro - para se aperceber da sua ledice, basta que o leitor recue a uma Primavera gaiata, e se lembre de sentir a alma chapinada por ânsias de pés descalços escalando alpodras -




e o seu esbelto amigo de olhos tristes e nome desconhecido, a que aqui vou chamar, por análoga e insurgente ironia, "Cãodido" ou o Optimismo, em evidente alusão ao famigerado conto de Voltaire.


(Caro leitor, exige-me a continuidade narrativa que ordene sentido coreográfico aos dedos sobre as teclas, como num exercício marcial, para assim aplacar a efervescência criadora, bailadeira estreme. Avante, pois! E venham comigo!)

I
De como o Trotsky se tornou guardião da Quinta-do-Sol

(Fui interrompida)


Foto do André

Obsequia-nos Janeiro com um belo dia de Reis sábios.
Acho que me vou agasalhar, aparelhar a arma e fazer-me à caça...
Depois dar-vos-ei a provar os meus troféus, se os conquistar!





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olhos quentes d’avelã
lábios rubros cor cereja
Leonor pela manhã
toda anjinho d’igreja
*
a postura de petiza
frágil como uma flor
e no perfil se divisa
a graça de Leonor





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E é este suspiro do tempo
que fustiga a sintonia dos objectos, geometricamente arrumados.
E enaltece o que não tem textura ou explicação.