(...) Até à roda dos meus vinte anos, o Porto e um «bom cidadão do lugar» estavam tão religados no meu espírito, que eu amava a cidade só através de um rosto - o de Domingos Peres das Eiras. Naquelas falas, que Fernão Lopes pôs na sua boca, era a masculina música das palavras sem vileza que eu escutava, e o seu rosto, de que nenhum de nós conhece as feições, uma das poucas imagens de hombridade portuguesa, que eu juntava a outras, num tempo em que a juventude não cessa de crescer.(...) - Domingos Peres das Eiras é o seu nome -dizia eu aos amigos, quando visitei o Porto pela primeira vez, num entardecer já distante, ali, no terreiro do Convento da Serra, fascinado com todo aquele casario que se derramava às golfadas no Douro, as fachadas roídas pelos dias húmidos e viscosos, onde uns restos de sol fulguravam nas janelas e nos tellhados, e as torres mais hirtas pareciam recuar na noite, que começara a cair. - Precisas de ler Camilo - responderam-me. Eu calei-me: não era forte em Camilo. Pensava no espírito tão genuìnamente popular desta terra, a que se encontrava vinculada a mais alta das suas virtudes, a sua fronderie liberalista, que conquistou o privilégio de banir a nobreza dos seus muros e não permitiu ao Tribunal do Santo Ofício celebrar aqui mais do que um só auto-de-fé. Que me importava a mim, naquele momento, o que Camilo dissera do Porto? Poderia alguém, Camilo ou quem quer que fosse, negar aquela beleza desgrenhada e áspera que tinha diante dos meus olhos? Só mesmo quem fosse cego de nascença... (...)
 

Eugénio de Andrade, in prefácio "Daqui Houve Nome Portugal"

Sem comentários:

Enviar um comentário